segunda-feira, 3 de maio de 2021

Coragem



Existe um rio profundo,
Pesado, represo, surdo,
Águas paradas, frias, turvas;

Existe um rio fugidio,
que corre em si,
Que corre de si,
por si mesmo
 e pelos outros;

Existe um rio condensado,
tão sem sossego, 
que mesmo se ele não houvesse,
Ainda assim, ele existiria.



quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Barulhices

                                  


O estrídulo de estrelas sedentas
batendo n'água,

O zum-zum d'um vazio
no pau oco,

O crepitar da lua cheia
a cair em chamas
num chão d'ouro;

Inda tantas outras supressões:
são apóstrofos
que não me deixam dormir. 




segunda-feira, 10 de agosto de 2020

"Autodefinição"

Tônica,
Preposicionada,

Oblíqua,
Hiperbólica,

Hiata,
acentuada,

De sujeitos compostos,
De predicativos indiscretos,

De versos em cantos,
De versos brancos,

Às vezes analítica,
'sometimes' sintética,
E tão 'a veces' 'sometimes'...

Mullher do multiverso
E de uma conjugação
pronominal reflexa:

'always', eu me dispo de quem sou.


sábado, 8 de agosto de 2020

Água-viva




Ela é uma espalha-brasas,
É maria-vai-com-as-outras,
É fura-olho,

Alma-de-cântaro,
Sabe-tudo,
Dedo-duro,

É cheia de não-me-toques,
de lenga-lenga,
de bico-doce,
de papo-furado,

E blá-blá-blá...

Na cabeça dela, 
um pout-pourri:
hífens ligam
nhem-nhem-nhens
de todos os níveis;

Mas é como ela funciona, ué.
Sei, difícil pra você entender,
você não é hifenizado. 




quinta-feira, 23 de julho de 2020

"Do incerto"


   Da terra, os sulcos
   Da estrada, a curva
   Das folhas, o limbo
 
   E o lombo do gado

   Da árvore, a finca
   Do morro, a morrência
   Dos galhos, o desnorte
 
   E do coração da mulher, o enfado.


 
 

"Criando meninas pra casar"


As flores de linha
penduram o tempo da prole
naquele teto sem sol
Onde cupins se alimentam;

O miasma de bolorentos hábitos,
A traça dos d(anosos) costumes,
A dor dum pecado carcomido:
Atenta _ a original Eva;

A aroeira estacada
e a moral tesa
nem o afoito vendaval
pós-moderno leva;

Infelizes, as flores de linha
guardam os tempos
em seus miolos moles. (LL)




sábado, 18 de julho de 2020

"Todo estrelas"


Meus olhos caíram
na dor do poeta na calçada fria:
Não pude mais erguê-los;

Meu queixo caiu
pelo que escrevia:
Nunca mais o levantei;

Meus olhos ainda
passeavam preguiçosos
as estrelas de um blusão surrado,
quando dei por meu alheio...

Eu de mim, já me apartava.

E que entre ter letras,
canetas e ter estrelas
E sobre letras, canetas e sob estrelas...

Ah, mulheres, faz-se fácil entretê-las...!



quinta-feira, 2 de julho de 2020

"Velhice"


Assopra nos meus olhos,
os ciscos não me deixam ver;

Afaga meus cabelos,
minha cabeça dói pensamentos;

Procura em minha mão
uma farpa na linha da vida,
ela me espinha;

Estou em preto e branco agora,
dá-me um vestido colorido;

Enfeita o demais que tenho ouvido:
traz-me um brinco
gota d'água ou grão de areia;

Não posso sair assim,
cega e espinhada, dolorida e feia;

Sigo trilha imaginária vida afora,
outro canto, outra poesia,
Vê, Lice...! lá vou eu me levando embora.



quarta-feira, 17 de junho de 2020

"Da vida"


Viver não é perigoso, Rosa,
perigoso é viver infeliz.



O silêncio dos santos no Brasil



        São João
        no alto do mastro,
        Campanário
        sem som de sino,
        São Pedro
        entregue à fogueira,
        Santo Antônio
        agarrado ao menino,

        Soma-se a isso,
        toda cerração,
        todo véu
        no breu dos mantos:

        Nossa Senhora
        na redoma,
        A espada inerte
        de São Jorge,
        Santa Luzia
        com a vista turva
        e Jesus cativo na cruz.

        Luz, luz, para onde?
        Luz, luz, qual o lado?
        Ouçam, santos calados,
        o barulho brasil da dor.
     
     
     


segunda-feira, 18 de maio de 2020

As flechas da tarde



A manhã
escura
ria dos meus medos,

A manhã sabia
que a tarde traria nas mãos
um sol Anhanguera,

Que foguearia
meu coração índio congelado,
cansado da guerra fria.



domingo, 17 de maio de 2020

"Pavonice"


     
      Cu-ri-ca-ca,
      So-no-ra e
      ma-ri-ta-ca,

      Quem dera
      eu me chamasse
      Curicaca

      Soletrar-me-ia
      dia e noite,
      noite e dia.


terça-feira, 7 de abril de 2020

Os olhos silentes da lua

         

           Abril, outono de 2020, tempo escuro, um breu. E a lua tentava, feito lua mesmo, aclarar as noites escuras dadas pelos dias. E a lua insistia em brilhar o céu dos antigos meninos da terra que brincavam de roda, de amarelinha, de pique-salva debaixo de sua luz. À porta da lua. 
             E a lua em sua roda fingia não ver a roda da doença, a roda da fortuna, a roda ciência, a roda política, a roda das clausuras, a roda mundo, a roda.
                E a lua fazia de conta que não enxergava que o céu era só dela e do chão da amarelinha. De mais ninguém. 
               E a lua em sua clareza sabia que para muitos não existiria o lugar a salvo do pique-lata. 




quarta-feira, 1 de abril de 2020

Redondices



A lua
nasce
para crescer lua

A lua cresce
para se encher
de lua

A lua se enche
para se esvaziar
de lua

A lua
míngua
para se inovar

E crescer para lua
E se encher de lua
E se esvaziar de lua

E tudo de novo
E tudo de nova

Ora é a coisa toda _ um ovo
Ora é coisa nenhuma _ uma ova




Florboleta



Cá isolada
num canto
tanta
borboleta vejo

Em tal porção
que cada flor
recebe beijo
de uma cor



segunda-feira, 30 de março de 2020

Esconde-esconde



Vem,
brinca comigo,
Lua nova,
Nós duas meninas

Tu te achas
entre folhas
de árvores:
iluminas

Às cegas,
eu me mostro
e escondo-me
em folhas de livros

E tu não me pegas



terça-feira, 24 de março de 2020

Vidinha de artista


O faro
O farol
O faroleiro

A luz da estrela

O fado
O fadário
O enfadonho

A sombra da lua

A face
O faceiro
A façanha

O escudo nos olhos

A fera
O feroz
O ferreiro

O espeto de pau

A faca
O faqueiro
A fraqueza

O breu do peito

A fala
O falante
A falácia

As pernas da mentira

A fé
O fá
O fim

Que pena d'eu
Que dó de mim...!



quarta-feira, 18 de março de 2020

"O dano itinerante"



      Espalha no ar,
      Passa de mão em mão,
      Lacrimeja olhos,

      Ancora-se nos batentes,
      corrimãos e trincos
      e nas chaves em molhos,

      entra por baixo das portas,
      invade janelas,
      se mete nas fechaduras,

      Sobe pelas paredes,
      adentra as rachaduras,
      ela abrenha as redes,
   
      É demais infiltrável,
      a maldade humana.
   


     

terça-feira, 17 de março de 2020

Um português

                           

    Ele era feito
    azulejo antigo
    raro
    belo
    pretendido
 
    Era frio
 
    E tal qual
    o azulejo antigo
    muitos ciscos
    absorveu
 
   
 

segunda-feira, 2 de março de 2020

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Dupla negativa

  Se te agrada,
  somos iguais:
  nós dois
  amamos
  essas coisas
  que não acabam
  em nada.



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Minha absoluta incerteza



Sonha doce
em minha eira,

Achega-te,
Beira-me,

Pousa à sombra
da minha asa, copaíba, aba;

Carambola, ingá, cajá,
manga, mangaba;

Em meu cerrado, a flor da gabiroba
abre saudades;

Já penso ir-me embora,
E já vou indo.

Somos frutas ímpares
em pares;

Quero-te solto 
em meu chão,

Te quero 
preso nos ares,

Quero-te 
ilha, liberto,

Te quero (de longe)
Bem perto;

Fruta desverde
apensa ao pé,

Fruta madura
desprendida;

E digo que te quero, eu,
Logo eu, que tenho gasto
tanto adeus em minha vida...!



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

"Num jardim da vida"


                           Resultado de imagem para manacá flor
       
     Lá lavandas cheiram
     sem rima
     
     Ali lírios lívidos
     aliterados
     
     Cá o manacá
     cachos de amores roxos
     suspensos a nos machucar 
     
   
   


terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O onde



Madrugadinha:
há escuros
nos nossos jardins;

Canteiros dormidos,
Margaridas mudas,
Narcisos cegos.

Um no outro,
Acendemos as luzes
de nossas mãos,

É então que
nossas mãos luzidias,
falantes, ditam os caminhos...




domingo, 16 de fevereiro de 2020

"O espetáculo"



              Num pé só
              ela rodopia,
              Corrupia tonta,

              Voluteia,
              volve,
              volteia,

              Árdega,
              sôfrega,
              embutida,

              Saci,
              Fouetté,
              Gravita em si.
           
              Sem freios,
              gira, a vida.
           


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

"Più o meno"


       
Brasília
luzia
e escurecia

A quadra
entre a noite
e o dia
           
A vida
meio cheia
meio vazia



O peso da fé


                                   

         Ah, benzinho,
         que vida cara...!

         Meu bem,
         que vida
         que nos custa tanto;
       
         Custa-nos crer
         no que passamos
         juntos;
     
         Custa-nos crer
         no que vivemos
         separados;

         Custa-nos crer
         no que viria;
       
         Custa-nos crer
         que acreditamos
         em nós dois um dia.

     


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Qual é a sua África?




Que dezembro riu,
que amorenou meu amor assim?
Qual é a sua África?

Que mar se abriu
que você, caminho,
apareceu?

Você veio vida vento,
meio sem graça,
meio reza, batuque lento,

Traz a sorte, mais que isso:
raça, pimenta, encanto, 
toda cor, todo feitiço;

É muxongo com abará
Búzios com agogô,
berimbau com cafuné,
acarajé com tambor

Nossa história e tua fé,
Cá comigo e Caculé....!

Tudo do seu mundo negro
É lua branca no meu mundo;

Vem, risca meu chão
feito santo,
Branqueia outro riso meu,

Põe minha poesia
Na mala, na cama,
diz que me ama, eu acredito;

Põe meu escuro pra dormir lá fora,
bota meu sonho tristonho
embaixo da asa, leva embora,

Assopra no meu sono, moreno,
O amor existe,
Vi o amor inda agora,

Ah, meu preto,
Da boca de amora,
O amor mora por aqui.  






quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Presente.




A noite caminha para o fim,
Na madrugada
pensamentos ciganeiam
ruas compridas,
labirínticas,
mal iluminadas:
Sou eu tua insolente insônia,
Santuários, umbrais;
Um ás, uns ais.
Volteio artístico
na finitude
de teus sulcos cerebrais,
Glutinosa,
viva,
Sou clímax:
cume da tua narrativa,
látex no teu córtex.
Teu cumprir.
Ando teu infinito estar
e deixo-me
escapulir derretida,
salgada,
no contrair da tua face,
no escuro do teu lugar.




terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O emerso


                            

               O tempo nada pra longe as velhas histórias e com a brisa vêm novos alcances. Ouço conchas. Hoje quando me perguntam como ele era, digo que era um tipo qualquer, comum, simples: tinha corações tatuados na planta dos pés, era cheio de alturas e de parcas grandezas.





quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Roda lua amor roda lua



Todo amor
veste-se de lua
e faseia:

Míngua,
é novo,
cresce
e é cheio...

e míngua,
e é novo,
e cresce,
e é cheio...

É do amor e da lua
esse saracuteio.




quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Meus sobejos

   




     Em ciscos silábicos,
     por cartas de amor ventadas,
     meus dias se vão
     por debaixo da porta,

     Em cinzas de letras,
     como livros na fogueira,
     meu riso vira carvão:
     ironiza o branco dos meus dentes;

     Em restos de mesa,
     minha falta de fome
     espalha migalhas de inanição
     na toalha de rosas desfolhadas

     Em gotas borrifadas
     os sentidos evaporam-me,
     e em nuvens cinza solidão
     sobro-me aqui, em partes.
 


   

   
   

sábado, 25 de janeiro de 2020

Os inanes




            Andavam em canoas furadas, usavam roupas rotas dentro de si mesmos e tinham os corações esburacados.
             Ali,toda luta, ninguém parava dentro deles. Pessoas se seguravam, agarravam-se como podiam, mas vazavam pelos vãos das canoas, das roupas, dos corações.
             Dali, pessoas escorriam álgidas e gotejavam de onde, sabe-se, nunca conteria alguém.






sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Fogo amigo




  Um fogo vinha
  das bandas de lá
  É labareda nos olhos
  que todo
  sol nascente dá





quarta-feira, 22 de janeiro de 2020



    Eu
    pimenta
    ardo-te

    Tu
    cebola
    cega-me

    Sais
   
 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

"Linguagem"



Não é exclusivo
de nossa língua,
também
outras línguas diferentes
podem
dar com a (nossa) língua nos dentes.




segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Adequações - Do livro Gado Cigano



Moço, moço,
vá embora não.

Tenho uma
poesia
na cabeça,
e na boca
uma canção.

Mas de tudo
se queres ir,
não tem jeito,
não sou eu
a te obstar.

Minha poesia
cabe em
qualquer peito
e a canção
que trago
se assenta
em todo lugar.




sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Claro escuro




Morte, tu que és tão forte...
Quão firmada, és.

Pousa crédula na tua força,
a lâmina célere
invasora de sonhos dos 'eus',
Que rasga a pele dos sentidos
e pui a organza clara
da crença num Deus.

Morte, tu que és tão forte...
Absoluta.
A alma a qual queres,
a nenhuma perdoa.

Peço-te _ como se faz a um Deus _
Voa, aqui, pássaro sombreado,
irônico, travesso...
Versa de vez a tua malvadez.

Discrepo
da tua maleficência,
Da tua boa eficiência
de dar o amargo
'in dribs and drabs',

Do inferno impérvio
donde sai tua ira, não tardes,
Vem!
E liberta, e livra, e libera
quem no sal arde;
Não retalhes mais o espírito,
não flageles mais a carne;

Morte, tu que és tão forte...
Absoluta.
A alma a qual queres,
a nenhuma perdoa,

Morte, tu que és tão forte...
aferra os sofreres, limita:
prenda-os na vasta parede
que separa os dois mundos.





quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

"Imperdoável"



A dor dele brilhava
feito purpurina
em pó:
grudava nas pessoas;

A dor dela,
gás lacrimogênio
em quem a via
desmoronar;

A dor do menino
era acastelada,
dor guardada em pote.
Moraria n'alma, toda vida.




sábado, 9 de novembro de 2019

"Flexão grau da palavra"



No ouvido dela,
faça barulhinhos,

Na cabeça dela,
faça barulhos,

no coração dela,
faça um barulhão.




sexta-feira, 8 de novembro de 2019

"A solidão da volta"


Seis da tarde:
o escuro.

Numa 'single file',
carros
de olhos vermelhos
faiscados
e de sorrisos amarelos
voltam pra casa;

Brilham
os retrovisores,
luziluzem
as retrovisões...




quinta-feira, 7 de novembro de 2019

"O anel que tu me deste"



'Sometimes',
carecemos do barulho
para calar a boca
de nossos
silêncios eloquentes,

Foi então
que empurrei
a nuvenzinha escura
para um canto

e me deitei
algodão
no seu colo
pena;

Fiz do meu jeito.
Dei asas
às conchas
da praia do Futuro

e fortalezas
de pérolas
se desmancharam
a pulular
do céu peito.





quinta-feira, 31 de outubro de 2019

"Sinas"



Não se estranhe, mulher.
É assim mesmo.
Topo e salto,
O caos, o encanto,
voar alto,
Isso tudo é da nossa natureza.





quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Há mares



Morrer 
de amar

hei 

de amar
ao arrepio da lei




As mãos dela


   Nas mãos
   de minha mãe,
   linhas
   lampejam,
 
   A linha
   da vida
   borda
   o bem,
 
   No colo
   de minha mãe,
   um tecido
   ondula
   em música,
 
   À baila,
   valsas vienenses, vêm.





terça-feira, 15 de outubro de 2019

Barulhinho de chuva


Chuva fruta
Reza
Brota
Estoura gotas
no chão

Chuva
em contas
de vidro
Rosário
Poças estalam
em oração

Chuva
em pontas
Estalactites
O fálico
O cálcio
Chuva clara
dores do não

Chuva mole
Gruta escura
Moça pedra
sopesa
Atura
bruta solidão



domingo, 13 de outubro de 2019

"Analista"


Em minha lida,
eu assopro
(no outro)
os cortes da vida;

E um vento
grato inocente,
sem saber
do meu múnus,

assopra pra longe
o prato de lanhos
que viria pra mim.